Em entrevista concedida ao jornal Valor Econômico, psicóloga aponta sinais e como lidar com doença conhecida como “síndrome do esgotamento”
Sobrecarga de tarefas, esgotamento físico e mental, ansiedade e depressão. Esses são alguns sintomas encontrados em diagnósticos relacionados à síndrome de Burnout, tema central da entrevista com a psicóloga Susan David, da Universidade de Harvard, concedida ao jornal Valor Econômico .
A doença é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que considerava a doença como “problema de saúde mental e um quadro psiquiátrico” e passou a definir como um “estresse crônico de trabalho que não foi administrado com sucesso”, ou seja, uma doença ocupacional.
Uma pesquisa realizada empresa Gattaz Health & Results, liderada pelo presidente do Conselho Diretor do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq – USP), Wagner Gattaz, mostra que 1 a cada 5 profissionais brasileiros (18%), sofrem com a síndrome do burnout. O estudo aponta, ainda, que as maiores incidências são encontradas em trabalhadores que lidam diretamente com o público, caso dos trabalhadores da categoria bancária.
O tema vem ganhando relevância nos debates sobre o ambiente corporativo e saúde mental, além de ser uma pauta constantemente debatida pela categoria bancária, sobretudo nos encaminhamentos realizados pelas comissões de empregados dos sindicatos.
Abaixo, replicamos a entrevista na íntegra.
Susan David, PhD, psicóloga e professora na Harvard Medical School, autora do best-seller “Agilidade Emocional” (editora Cultrix), traduzido para 30 idiomas. Com o livro, de 2016, a sul-africana ganhou o prêmio 50 Thinkers, como uma das mais inovadoras e influentes pensadoras sobre gestão no mundo. Ela foi palestrante na conferência “EnlighTED”, realizada pela Universidade IE e grupo Telefônica em Madri na semana passada. Após o evento, David concedeu entrevista exclusiva ao Valor. A seguir os principais trechos:
Valor: Você acha que temos mais ferramentas depois da pandemia para lidar com nossas emoções?
Susan David: Sim. As habilidades emocionais sempre foram críticas para todos nós. Acho que uma das grandes tragédias de nossas vidas foi que elas foram historicamente deixadas de lado, não foram ensinadas nas escolas e em muitas organizações. Eram consideradas “soft skills”. Mas qualquer pessoa que já passou um dia no trabalho lutando por sua carreira ou saúde mental sabe que essas habilidades não são “soft”, são habilidades “hard” e nos ajudam a lidar com as emoções humanas normais, incluindo as difíceis que vêm com a vida, com o fracasso e a doença. Acho que a pandemia, de várias maneiras, realçou o quão despreparados estávamos como seres humanos.
E digo despreparados porque muitas vezes as pessoas argumentam que ninguém tinha controle diante da pandemia. Mas a verdade é que nunca estamos no controle. Somos saudáveis, e então não somos mais.
Amamos e depois perdemos. Estamos em carreiras que estão indo bem, nossa empresa muda e de repente as coisas não vão bem. Vivemos em um mundo em que existe a nossa fragilidade e a fragilidade da vida.
Socialmente durante a pandemia foi notável para mim ver como, mesmo na sombra da doença e da morte, na mídia social, em todos os lugares, você via as pessoas dizerem coisas como, procure um raio de luz ou aprenda a assar pão.
Basicamente nos pediam para fingir que estávamos felizes em vez de olhar para a realidade. Acho que muitas das narrativas que temos hoje são falsas narrativas de controle, de apenas ser positivo e despreparado. Quando saímos da pandemia, uma em cada duas pessoas diz que está passando por um burnout, 75% das pessoas dizem que seu bem-estar diminuiu.
Basicamente nos pediam para fingir que estávamos felizes em vez de olhar para a realidade. Acho que muitas das narrativas que temos hoje são falsas narrativas de controle, de apenas ser positivo e despreparado. Quando saímos da pandemia, uma em cada duas pessoas diz que está passando por um burnout, 75% das pessoas dizem que seu bem-estar diminuiu.
Valor: Muitas pessoas ficaram sozinhas pela primeira vez. Como não perder o que aprendemos dessas experiências?
David: Muitas pessoas descreveram esse período como muito difícil. E mesmo nessa dificuldade, muitas se reconectaram com partes de si mesmas que haviam perdido com as ocupações da vida. Elas se reconectaram estando na natureza, fazendo exercícios ou apenas por estarem com crianças e não estarem tanto no piloto automático. Eu acho que uma das maneiras de manter isso é intencionalmente pensar sobre a vida. O que você não quer perder? O que você aprendeu sobre suas necessidades? O que você aprendeu sobre seus valores? O que você aprendeu sobre como deseja seguir em frente na vida? São perguntas que moldam os relacionamentos das pessoas e suas escolhas de carreira.
Valor: Como aplicar isso no dia a dia profissional?
David: Pela primeira vez na história da humanidade, estamos tendo conversas reais sobre habilidades que antes eram vistas como desnecessárias. Habilidades como empatia e compaixão. Uma das coisas mais extraordinárias que aconteceu na pandemia é que, do quarto à sala de reuniões, essas conversas agora estão acontecendo e isso é notável. Não há negócio agora que seja capaz de seguir em frente sem que reconheça como as pessoas se sentem. Por tantos anos, as organizações abrigaram líderes ruins e diziam coisas como, bem, esta pessoa produz resultados, embora todos em sua equipe estivessem infelizes.
As organizações não podem mais esconder essas pessoas porque há impactos no bem-estar, engajamento, cultura e liderança. Ignorar afeta a saúde mental das equipes, se elas ficam ou vão e tantos aspectos da capacidade de a organização ser verdadeiramente sustentável. Isso nos forçou a dizer como queremos trabalhar.
A maneira como trabalhamos nos últimos cem anos foi no piloto automático. Esta é uma oportunidade para ressuscitarmos o mundo do trabalho para os nossos filhos.
Valor: O movimento chamado de a grande renúncia, em que muitos profissionais, principalmente jovens, estão deixando os empregos e repensando sua relação com o trabalho pode ser um tipo de “legado positivo” da pandemia?
David: Acho às vezes que é menos uma grande renúncia e mais uma grande sabedoria. O que quero dizer com isso é: por que as pessoas estão se afastando? Por que as pessoas estão saindo? Por que as pessoas estão avançando? Porque elas querem fazer as coisas de uma maneira diferente, que corresponda ao tipo de vida que desejam viver. Mesmo quando uma organização está lutando para se manter financeiramente, ela agora precisa reconhecer que a sua sustentabilidade depende de mudanças. Ela não pode dizer: ‘as pessoas estão se demitindo, há algo errado com elas’.
As pessoas estão se demitindo porque há algo certo nisso, porque elas estão se reconectando com o que importa. E se queremos ser sustentáveis como organização, precisamos ajudar as pessoas a se conectarem com o que importa.
Valor: E muitas organizações agora discutem a saúde mental. Você acha que essas iniciativas estão realmente ajudando as pessoas?
David: Acho que falar de saúde mental é excelente no sentido de que não falar nunca funcionou para ninguém. Isso não significava que as pessoas não estavam sofrendo, apenas que estavam sofrendo silenciosamente.
Mas não é suficiente falar sobre saúde mental se ainda existe um estigma na sua organização. Se você fala sobre saúde mental e resiliência, essencialmente o que está fazendo é exigir que as pessoas continuem se adaptando a sistemas e processos insustentáveis, pedindo que trabalhem mais e mais.
Portanto, as organizações precisam mudar. Falar sobre saúde mental não é o mesmo que desenvolver habilidades que apoiem a saúde mental. Até recentemente as organizações viam habilidades de soft skills como coisas que não importam. E, no entanto, sempre que algo dá errado em uma organização, muitas vezes é por causa das coisas complicadas, bonitas e difíceis dentro de nós. Agora estamos em um ponto da história em que temos dados sobre o que funciona em termos de bem-estar e o que não funciona. Mas há um gap na hora de direcionar os indivíduos para as ferramentas que ajudam as pessoas a desenvolverem essas habilidades.
Valor: Você falou sobre os altos índices de burnout, e sabemos da ocorrência até entre jovens em início de carreira. Como poderíamos evitar esse quadro?
David: O primeiro aspecto é reconhecer quando as pessoas estão se sentindo esgotadas. Porque muitas vezes você acaba tendo um paradoxo: a pessoa está tentando fazer mais e está fazendo cada vez mais com menos eficiência. Porque quando começamos a nos sentiresgotados, tendemos a buscar mais ocupações. Mas para ir além do burnout, é preciso se reconheça qual é a parte gentil disso, porque muitas vezes quando as pessoas estão se sentindo com burnout se tornam muito duras consigo mesmas. Dizem a si mesmas que não têm o que é preciso.
Valor: É um sentimento de fracasso que experimentam?
David: Sim, elas se sentem um fracasso. Então a parte gentil é reconhecer que é difícil se “humanizar” neste momento. Se um amigo seu que estivesse sofrendo, você provavelmente ofereceria bondade e amor a essa pessoa. Você pode fazer o mesmo por si mesmo. Um segundo aspecto, como instrumento, é a aceitação geral: reconhecer que suas emoções difíceis são dados que sinalizam suas necessidades e valores. As pessoas sofrem de burnout por motivos diferentes.
Às vezes, a solidão, o que sugere que você precisa de mais intimidade e conexão em sua vida. Outras vezes é porque você está fazendo o mesmo trabalho dia após dia e pode dizer que está muito ocupado, quando na realidade está entediado. E o tédio costuma significar que você precisa de mais aprendizado em sua vida. Pode parecer contra-intuitivo porque, se estou esgotado, não quero aprender. Mas, muitas vezes, a porta de entrada para superar o burnout é o aprendizado. Em outras palavras, você pode levantar a mão ou se mover na direção que permite que você se sinta revigorado novamente como pessoa, que se conecte com o seu próprio crescimento como indivíduo. Desacelere e apenas diga a si mesmo: o que estou sentindo? As pessoas tendem a ficar mais esgotadas também quando estão fazendo o que se chama de atuação superficial. Se você for trabalhar e apenas sorrir porque foi o que lhe disseram para fazer.
Quanto mais as pessoas mostrarem em atitudes que estão encenando um comportamento, mais esgotadas ficarão. A alternativa para isso é o que chamamos de atuação profunda, que é quando você se reconecta com seus valores. Você trará os seus valores para o trabalho que faz. E não são os valores do seu chefe. Não são os valores da organização. São os seus valores.
Valor: É por isso que dizem que é preciso combinar os valores pessoais com os da organização, caso contrário, você será infeliz? Existe muita infelicidade nos locais de trabalho hoje.
David: As pessoas dizem que a organização tem esses dez valores e os escrevem na parede. Mas o que importa é se você vê maneiras de expressar seus valores no trabalho que faz. Às vezes, quando as pessoas falam sobre burnout, baixo bem-estar, saúde mental pensam: ‘como chegar à luz no fim do túnel onde finalmente me sentirei bem?’. Mas recuperar a saúde mental não significa encontrar a luz no fim do túnel. Significa aprender a enxergar melhor no escuro. Como aprendo a ver melhor no escuro? Você pode sentar, se encostar na parede lateral do túnel e descansar. Não há problema em se dar um tempo, uma pausa.
Não há problema em estender a mão e ver quem mais está no túnel. Não há problema em pedir ajuda ou suporte para se conectar com outras pessoas. E quando você estiver lá, reflita: o que esse escuro está me dizendo sobre minhas necessidades? Existe algo na minha vida que não está acontecendo agora?
Eu nunca conheci alguém que está deprimido, que não está em algum nível preocupado sobre como seria estar melhor no mundo. No escuro, naquelas emoções difíceis, muitas vezes, está o centro do que realmente importa para nós. Quando apenas corremos pelo alvo, para chegar à luz, tentamos fingir que estamos felizes. Forçar a felicidade não funciona.
O tiro sai pela culatra. O valor está em ser gentil consigo mesmo, tentar entender essas emoções difíceis para que você possa seguir em frente.
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