Este governo ignora que o problema fiscal não se resolve só com esforço de contenção de despesas e aumento de impostos. O déficit público é afetado pelos juros, disparado em primeiro lugar, depois pela queda de arrecadação e por último pela elevação de despesas. Vejamos.
Em 2015, o déficit foi de R$ 613 bilhões (10,34% do PIB), causado por R$ 111 bilhões (1,88% do PIB) do déficit primário (receitas menos despesas, exclusive juros) e por R$ 501 bilhões (8,46% do PIB) do déficit com juros. O déficit primário foi responsável por apenas 18,1% do déficit público. O déficit com juros por 81,9%!
Os Estados, municípios e estatais foram responsáveis por 16,2% do déficit e o governo federal por 83,8%, sendo que os juros causaram 77,3% desse déficit. Os restantes 22,7%, causados pelo déficit primário, foram explicados em 76% (!) pela queda de arrecadação e 24% pelo aumento de despesas.
O Orçamento deste ano teve um corte de R$ 24 bilhões para permitir superávit primário de R$ 30,5 bilhões. É insignificante diante da bomba que são os juros no setor público (R$ 501 bilhões em 2015), que caminham para ultrapassar R$ 600 bilhões (!), pois: a) a dívida bruta cresceu 21% em 2015 e; b) a Selic média, caso permaneça em 14,25%, como prevê o mercado financeiro, ficará 5,8% maior que em 2015.
Golpe no longo prazo. Para complicar o rombo fiscal de longo prazo, o governo cedeu à pressão dos governadores ao estender por mais 20 anos o pagamento da dívida estadual. Vai violar o coração da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no artigo 35, que proíbe o refinanciamento de dívidas. O rombo nas contas públicas com essa manobra será de R$ 36 bilhões, segundo cálculos do Ministério da Fazenda. Historicamente, os maiores Estados e municípios, que representam menos de 1% dos entes da federação, sempre viveram endividados e sempre conseguiam postergar as dívidas por mais 10 a 20 anos.
Mudanças. A única saída para a explosiva crise fiscal é a calibragem da Selic ao nível da inflação, como fazem os demais países desde a crise de 2008, e a venda do excesso de US$ 200 bilhões das reservas internacionais, segundo metodologia de exposição externa do Fundo Monetário Internacional.
A venda gradual de reservas pode propiciar a redução da relação dívida/PIB de 66,2% para 53% e propiciar uma economia anual de R$ 120 bilhões em juros. Caso a Selic vá para o nível da inflação projetada para 12 meses (7,3%), a economia adicional anual com juros atingiria R$ 220 bilhões. A economia total atingiria R$ 340 bilhões por ano!
Previdência. O governo argumenta que tem de fazer nova reforma da Previdência. Nessa questão, vale aprofundar o debate para além do impacto do aumento do número de idosos e da sobrevida. Há questões importantes a serem consideradas nas projeções fiscais. Cito, entre outras as seguintes:
1 – “O governo abriu mão de mais de R$ 40 bilhões em receitas da Previdência em 2015, em isenções de impostos para pequenas empresas, entidades filantrópicas e exportadoras agrícolas, mas agora quer rever essas renúncias fiscais.” (Estado 07/02/2016). Isso equivaleu à metade do rombo da Previdência em 2015, que seria o menor desde 1999. Essas desonerações, que estão afetando a Previdência desde 2013, deveriam recair sobre o Tesouro. Isso contribuiu para as análises catastrofistas sobre as contas da Previdência. O governo não pode meter a mão em recursos que não lhe pertencem. É um crime mais grave que as pedaladas, e proibido pelo artigo 14 da LRF, que qualquer renúncia de receita deve ser compensada com aumento equivalente de tributo, o que não ocorreu. Aonde está o Tribunal de Contas da União?
2 – Os países que adotam idade mínima de aposentadoria têm rede de proteção social ao desempregado. Aqui, quem é expulso precocemente do trabalho, que é a maioria, ou não consegue voltar ao mesmo ou tem seu rendimento reduzido correndo o risco de não conseguir se aposentar mesmo tendo contribuído durante 35 anos o homem e 30 anos a mulher. Essa é a crueldade que pode atingir milhões de pessoas! Sobre isso nada se fala.
3 – O fator previdenciário reduz o valor da aposentadoria precoce. Quanto menor o tempo de contribuição e idade em que é solicitada a aposentadoria menor é o fator. Um homem que contribuiu durante 35 anos (tempo mínimo de contribuição) e quiser se aposentar com 55 anos terá redução de 30,5% no valor. O fator foi previsto visando o equilíbrio atuarial.
4 – O argumento que as pessoas vão viver mais e sobrecarregar as despesas da Previdência omitem o fato da maior sobrevida ser prevista no sistema atual. Quanto maior a expectativa de sobrevida menor é o fator previdenciário e, portanto, o valor da aposentadoria. A cada ano, o IBGE apura a sobrevida que figura no denominador da fórmula do fator previdenciário. Assim, cai a cada ano.
5 – É necessário antes de qualquer reforma melhorar a gestão da Previdência. Há no entorno de 30% de inadimplência e sonegação e desvios que podem alcançar valores expressivos. Isso deve ser considerado nas projeções de receitas e despesas.
6 – O déficit atribuído à Previdência ocorre apenas na aposentadoria rural, que concede um salário mínimo ao homem após 60 anos e à mulher após 55 anos. Para custear isso, é insignificante a receita de 2,6% da atividade rural, que é mais da metade sonegada. A aposentadoria rural tem caráter assistencial e deve ser contabilizada no Tesouro Nacional, no orçamento da Seguridade Social com recursos do PIS, Cofins e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (Art. 195 da Constituição Federal).
7- Outra medida para elevar a receita da Previdência é acabar com a regressividade das contribuições para ganhos salariais acima do teto da aposentadoria, limitados a 11% do teto. Deveria ser 11% do salário.
8 – A demografia precisa ter dimensionamento pleno quanto ao impacto fiscal. A população jovem até 20 anos vem caindo desde 2000 em número absoluto. Em 2060, comparado com 2015 sofreria, segundo o IBGE, uma diminuição de 26,9 milhões de pessoas ante um crescimento na mesma base de comparação de 13,7 milhões na população de idosos (mais de 60 anos). Só a redução das despesas sociais dessa população jovem pode mais do que compensar o aumento da despesa previdenciária.
Conclusão. Não há solução para essa crise que não passe pelo saneamento fiscal. E não há saneamento fiscal com recessão e Selic acima da inflação projetada. Neste ano, prevejo novo recorde de déficit do setor público de 11% do PIB, assim composto: juros 9,5% do PIB, queda de arrecadação 1% do PIB e aumento de despesas 0,5% do PIB. Vale lembrar que só 36% da despesa pública não financeira pertence ao governo federal, 64% a Estados e municípios, que são autônomos do governo federal. Apostar só na limitada economia de despesa federal e não calcular o impacto fiscal demográfico considerando toda a população e não apenas a idosa é política suicida que acelera a explosão da dívida, tornando-a impagável.
*AMIR KHAIR É MESTRE EM FINANÇAS PÚBLICAS PELA FGV E CONSULTOR. ESCREVE QUINZENALMENTE
Fonte: Estadão – Texto publicado originalmente dia 28/02/2016
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